quinta-feira, janeiro 05, 2023

 

 MEMÓRIAS E EVOCAÇÃO DE BENTO XVI

   E DO TEÓLOGO JOSEPH RATZINGER (3)

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EDUARDO FERRAZ DA ROSA 




Na minha Conferência de 2006 sobre a obra Introdução ao Cristianismo de Joseph Ratzinger – referida na primeira parte deste artigo –, depois de anotar e comentar o conteúdo dos respectivos “Prefácios” às reedições de 2000 e de 1969, e à primeira edição (de 1967), todos constantes da publicação (Lisboa, Principia, 2005) que então apresentámos em Angra do Heroísmo, depois do acompanhamento das esclarecedoras, sugestivas e interdisciplinares perspectivas da “Introdução”, e assim antes de fazer incidir a exposição e a análise individualizada a todas as fórmulas, formulações, realidades e categorias religiosas e teológicas do Credo ou Declaração da Fé (também chamado “Símbolo Apostólico”) – tratadas nas 1.ª, 2.ª e 3.ª Partes Centrais do livro (sobre Deus, Cristo, o Espírito e a Igreja), e nesta última especialmente sobre o fundamental, complexo mas importante parágrafo 2 do capítulo II, cujo tema havíamos estudado, mais crítica e aprofundadamente, por relação à problemática conjunta e articulada entre a Antropologia Filosófica e a Escatologia propriamente dita (aliás motivo  de grande e natural atenção por parte de Ratzinger, que lhe dedicaria não só uma outra e inteira obra autónoma e sistemática, como havia assinado, a par de Rahner e Schmitt, os verbetes sobre aquele complexo assunto na Sacramentum Mundi, sob a direcção do primeiro daqueles seus colegas teólogos).

Postas assim as coisas, tratou-se de expor e debater as múltiplas questões sobre as quais a Introdução ao Cristianismo se debruçava, nomeadamente, como recordo, a situação actual da Fé em Deus e em Cristo; os conceitos do Divino e a dimensão Mística; a crise da Teodiceia após Auschwitz; o Logos, a Criação e a Cristologia, enfim, as dificuldades hodiernas do discurso crente e do próprio estatuto dos teólogos (quando não dos filósofos e do homem comum…), nos inseguros terrenos da Fé, do “poder aflitivo da incredulidade presente” dentro da própria vontade de crer e dos limites “da compreensão moderna da realidade” (alicerçada, segundo Ratzinger, após o declínio da Escolástica, nas guinadas da subjectividade cartesiana e da razão kantiana, do historicismo e do cientismo materialista, até ao contemporâneo pensamento técnico).

– Ora foi também a este propósito que Ratzinger recorreu à famosa parábola profética do clown circense de Kierkegaard, tantas vezes retomada por outros (de Harvey Cox a Leonardo Boff) perante os sucessivos incêndios societários e ecológicos nas insensatas cidades e campos dos homens, que só a alienação desavisada das massas, dos rebanhos e (também!) dos seus “pastores” (entre eles os de uma clerezia envergonhada e mal formada, tão zurzida pelo autor…), foi capaz de acolher, rindo e sofrendo nas suas próprias tendas, templos e areópagos.

Perante este decadente e deprimido quadro socio-religioso, individual e institucional, mental e moral (um “oceano de incertezas”) , desenha o futuro Papa Bento XVI as grandes sendas alternativas para uma autêntica e profunda reafirmação da Fé, assente na (re)conversão, na consciência dialógica aberta a uma esfera da realidade que acolhe e segue um “anseio de absoluto” que está inscrito na dinâmica estrutura fundamental, antropológica e metafísica do próprio sujeito, ou seja, como ele escreve, na consciência espiritual incarnada, isto é, na existência humana.

O teólogo de Introdução ao Cristianismo é também um humanista culto, bastante versado nas Humanidades, nas Artes e nas Letras, sendo inúmeras as suas bem evidentes vivências e domínio da Música – veja-se, por exemplo, não só as suas clássicas preferências musicais quanto a sua notável reflexão (declaradamente herdeira e seguidora de Guardini) sobre a Antropologia da Imagem Sacra, a Arte Religiosa, a Teologia Litúrgica, o Canto e a Prece, enfim, sobre a própria “lírica eclesial”.

– Autor de uma muito vasta obra, bem reveladora da sua Cultura e da amplitude do seu Pensamento, tanto nos tratados ou ensaios académicos quanto na discursividade dialogante das suas sempre esclarecedoras e conhecidas Entrevistas, nas Alocuções e Catequeses, no seu conhecimento da Patrística (Padres e Doutores da Igreja), com destaque para os seus dilectos S. Boaventura (cuja Teologia da História estudou a fundo) e S. Agostinho (cuja dimensão existencial lhe foi sempre decisiva), e bem assim nas suas Encíclicas, Joseph Ratzinger foi na verdade um marco intelectual superior na galeria dos Papas.

Sendo verdade que nem toda a sua obra teológica e pastoral, e a sua acção doutrinal receberam apoio ou congratulação unânime na Igreja e fora dela – especialmente pelo seu papel, determinações e orientações concretas como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, nem por isso se lhe pode fazer acusação de incoerência, intransigência conceptual absoluta ou incompetência de fundamentação argumentativa, mesmo nos pronunciamentos mais controversos…

Uma palavra final quero deixar hoje no que se refere mais concretamente, apesar da grande qualidade das suas obras teológicas, quer à actuação de Ratzinger como Prefeito da Fé e como Papa, quer às alegadas omissões a propósito dos escândalos de pedofilia na Igreja, insistentemente agitados hoje, porquanto, uns e outros recorrentemente repisados, nalguns casos o foram e são com menor ou temerário juízo de acusação estratégica, sem provas (que sempre devem ser apuradas para merecida repressão, castigo e penas; e noutros, o foram e são com evidente desconhecimento de causa e matéria textual, quando não de ignorância, leviandade, ou mera incompetência disciplinar.

– E depois, no domínio duplamente ilícito e pecaminoso dos provados abusos sexuais, como poderia crer-se que encobriria factos e crimes ignóbeis e escandalosos desse jaez, quem, tanto civilmente e “considerando a gravidade dessas culpas e a resposta muitas vezes inadequada que lhes foi reservada da parte das autoridades eclesiásticas”, sobre eles e elas escreveu, por exemplo, a “Carta Pastoral aos Católicos da Irlanda”!?

Escrevo e termino este texto na véspera do funeral e última despedida de Joseph Ratzinger/Bento XVI, relendo e retendo uma parte do seu Testamento, aí constatando novamente a  coerência do seu Pensamento Teológico, Filosófico e Ético, condicente com a nobreza Espiritual da sua Alma e do seu Coração:

– “A todos aqueles que de algum modo tenha cometido um erro, peço perdão de coração.

 “Aquilo que antes disse aos meus compatriotas, o digo agora a todos aqueles que na Igreja foram confiados ao meu serviço: permanecei firmes na fé! Não vos deixeis confundir! Com frequência, parece que a ciência – as ciências naturais de um lado e a pesquisa histórica (em particular a exegese da Sagrada Escritura) de outro — seja capaz de oferecer resultados irrefutáveis em contraste com a fé católica. Vi as transformações das ciências naturais desde tempos remotos e pude constatar como, ao contrário, tenham desaparecido aparentes certezas contra a fé, demonstrando-se ser não ciência, mas interpretações filosóficas somente aparentemente incumbentes à ciência; assim como, por outro lado, é no diálogo com as ciências naturais que também a fé aprendeu a compreender melhor o limite do alcance de suas afirmações e, portanto, a sua especificidade. São pelo menos 60 anos que acompanho o caminho da Teologia, em especial das Ciências Bíblicas, e com o subseguir-se das várias gerações vi ruir teses que pareciam inabaláveis, demonstrando-se serem simples hipóteses: a geração liberal (Harnack, Jülicher etc.), a geração existencialista (Bultmann, etc.), a geração marxista. Vi e vejo como do emaranhado das hipóteses tenha emergido e emerja novamente a razoabilidade da fé. Jesus Cristo é realmente o caminho, a verdade e a vida — e a Igreja, com todas as suas insuficiências, é realmente o Seu corpo.

 “Por fim, peço humildemente: rezem por mim assim que o Senhor, não obstante todos os meus pecados e insuficiências, me acolher”.

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"Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 05.01.2023):



e "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 06.01.2023):






quarta-feira, janeiro 04, 2023

 MEMÓRIAS E EVOCAÇÃO DE BENTO XVI

E DO TEÓLOGO JOSEPH RATZINGER (2)

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EDUARDO FERRAZ DA ROSA 



No nosso país, entre os vários autores e estudiosos da obra de Joseph Ratzinger – muitos deles ligados à nossa Universidade Católica, com livros ou ensaios publicados em Revistas de especialidade (como a Didaskalia), cuja investigação  académica e o decorrente conhecimento da obra do Papa Bento XVI mais se cultivou, afirmou e ajudou a divulgar –, conta-se o teólogo Doutor Henrique de Noronha Galvão (1937-2017), antigo professor da Faculdade de Teologia da UCP, a quem fiz referência na primeira parte deste texto.

 

Todavia – como ali vinha dizendo – ainda na sequência da pontual indicação de influências universitárias, proximidades intelectuais cristãs e até de ligações pessoais ao magistério teológico, filosófico e cultural do Professor Ratzinger, cardeal e futuro Papa Bento XVI, e querendo relevar esses e outros pormenores e acontecimentos, de certo modo confluentes nesse domínio histórico-intelectual e espiritual, que, embora já à distância de alguns anos, configurou a vida e a obra do Papa Emérito agora falecido, – julgo valer a pena salientar o que (em 2017, data da morte do Padre Noronha Galvão), escrevia Tolentino de Mendonça, ao situar sociologicamente, com intencional desenho de paralelismos, certos contextos vividos em Portugal e na Europa, num registo do quadro socio-religioso e intelectual que vou reproduzir e que sinaliza uma exemplar e quase análoga situação de crise, permanentes e paradigmáticas perguntas, ligadas e uma familiar procura de respostas por parte de toda uma anterior geração, mas ainda também existencialmente viva e activa na mais autêntica e dramática reflexão prática da nossa própria temporalidade e dos seus sinais:

 

– “A história está cheia de surpresas assim. O momento dramático em que uma geração de católicos de primeira linha se declara “vencida” [Tolentino refere-se claramente a Bénard e Alçada e à geração de “O Tempo e o Modo”, tal como poderíamos relembrar aqui e ali a poética de Ruy Belo…], e ensaia uma dissidência do espaço eclesial, [que] servirá inesperadamente a um jovem padre português para construir um percurso de invulgar consistência no interior da teologia. A pergunta pertinente é esta: pode, ao mesmo tempo, e sem atraiçoar nenhum dos campos, ser-se um leitor atento de António Alçada Baptista ou João Bénard da Costa e ser um discípulo fidelíssimo de Joseph Ratzinger? Henrique Noronha Galvão mostra que sim, quando no final dos anos 60 é enviado pelo cardeal Cerejeira para finalizar os estudos na Alemanha (…). Foi então que um amigo alemão lhe falou da obra notável de um professor de Tubinga, intitulada Introdução ao Cristianismo e que é certamente um dos textos emblemáticos da teologia contemporânea. (…) A leitura desse livro convenceu-o: não só abordava com vertiginosa clareza as questões que o preocupavam, como manifestava uma rara abertura a outras culturas, que não apenas à germânica”, aduzindo achegas e metodologias de Dante, Camus, Gabriel Marcel, Greimas e Roland Barthes, Heidegger e Gadamer, para trabalhar “o tópico do conhecimento de Deus nesse existencialista abissal que foi Agostinho de Hipona”, numa circularidade temática e metodológica que teria, como teve, de merecer a adesão de Ratzinger, não fosse ele um outro apaixonado pelo autor das Confissões.

 

Por outro lado, já anteriormente, a Didaskalia havia dedicado ao Prof. Henrique Galvão uma integral edição jubilatória na qual, pelo seu então director, Peter Stilwell, foi justamente salientado o seu decisivo contributo para a exigente e renovada evolução gradual da Faculdade de Teologia da UCP “como instância formadora dos quadros superiores da Igreja Católica para a sua missão de diálogo de nível universitário com outras áreas de saber”, tanto mais quanto ele fora “um dos protagonistas da reintrodução da reflexão teológica no mundo universitário português”, para a qual muito contribuira uma “longa experiência em universidades alemãs, durante o período de preparação do seu doutoramento, e a colaboração próxima com docentes como o Prof. Joseph Ratzinger, seu orientador”.

 

– Porém, voltando mais especificamente ao livro Introdução ao Cristianismo, importará dizer que o mesmo foi originalmente publicado em 1967, como texto adaptado das prelecções universitárias proferidas por Ratzinger em Tubinga, quando, segundo ele adiantou logo (e reiteraria em 2000), dificilmente teria havido outro momento em que “a questão do conteúdo e do sentido autêntico da fé cristã estivesse envolta numa névoa de incertezas tão densa”, pelo que, com aquela abordagem aos credos do Cristianismo e à Igreja Católica, queria “ajudar a compreender de uma nova maneira a fé como possibilidade de uma verdadeira existência humana no mundo de hoje, interpretando-a sem a transformar num mero palavreado que tenha dificuldade em esconder um vazio espiritual completo”!

 

Ora, deste ponto de vista, de entre todas as muitas e conjugadas obras e títulos do próprio teólogo Joseph Ratzinger e/ou do (mesmo) Papa Bento XVI, talvez que a Introdução ao Cristianismo (embora pensada em 1967, na efervescência dos primeiros anos pós-Concílio Vaticano II) continue a ser uma das mais relevantes abordagens àquilo a que ele chamou uma paradigmática aceleração da história universal, marcada, de modo cultural, espiritual e socialmente dramático, pelos seguintes desafios:

 

– Em 1968, pela “rebelião de uma nova geração que não só julgou insuficiente, cheia de injustiças, de egoísmo e de avareza a obra de reconstrução do pós-guerra, como considerou errado e fracassado todo o percurso da história a partir da vitória do cristianismo”, tentando depois edificar, “finalmente”, um mundo novo de igualdade, liberdade e justiça, a partir de um outro caminho-meta “encontrado na grande corrente do pensamento marxista”; de seguida, em 1989, ao verificar-se uma derrocada dos regimes comunistas na Europa, a “triste herança de uma terra arrasada e de almas destroçadas”, os relatos dos gulags e o esquecimento de vozes como as de Soljenitsin, sem que o Cristianismo conseguisse apresentar-se como “alternativa memorável”.

 

Desse modo, aquelas duas e co-implicadas conjugações histórico-temporais teriam gerado, ou reflectido, díspares e confluentes roteiros para futuros baseados ora numa ética pseudo-salvadora ora numa visão cientifista do mundo, com regimes sangrentos e de terror, redutoras teologias “de libertação”, eucaristias revolucionárias, retrocessos a pragmatismos imorais, cepticismo e irracionalidades, paraísos artificiais e comércios da mais abjecta exploração dos seres humanos e da natureza, com um pós-moderno relativismo religioso, a par de um “retorno do religioso” pelo lado de uma amálgama de crenças e crendices, ou de uma indistinta  “mística natural”, sem autêntico contacto com o Divino.

 

– Porém, aquela conjuntura de temas críticos e problemáticas filosóficas, sociopolíticas, culturais, psico-comportamentais, morais e religiosas dos anos de 60 e 70 (comparável à de um novo eixo civilizacional em pleno coração do Século XX), também pode ser vista assim como “uma espécie de divisor de águas simbólico, posteriormente mitificado ou depreciado”, “não tanto pelos abalos que ele também criou no tecido eclesial, mas sim por um dado editorial surpreendente (…), naquele restrito arco de tempo, aparecendo [assim] uma sequência de textos teológicos que permaneceram – embora com gradações e níveis diferentes – como pilares indicadores de um processo que, depois, se ramificaria ainda mais em várias direções inéditas”, como resumiu Gianfranco Ravasi, a partir das leituras dessa obra de Ratzinger – “um ditado límpido e marcado por piscadelas culturais variadas”, identificando “alguns nós estruturais do cristianismo” –, tal como também presentes nas teses ou potenciados nos trabalhos de outros teólogos católicos e protestantes (Fuchs, Metz e Mary Daly), em filósofos de heterodoxa proveniência marxista (como Bloch), ou expresso no célebre  diálogo europeu de 2004 com Habermas sobre a Secularização, o Poder do Estado e a Democracia, a Liberdade, a Justiça e a Comunicação, realidades e instâncias que deveriam permanecer, todas elas, subordinadas aos supremos valores da Verdade e da Ética.

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Publicado em IGREJA Açores:

https://www.igrejaacores.pt/memorias-e-evocacao-de-bento-xvi-e-do-teologo-joseph-ratzinger-2/

"Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 04.01.2023):


e "Correio dos Açores" (Ponta Delgada, 05.01.2023):





terça-feira, janeiro 03, 2023

 

MEMÓRIAS E EVOCAÇÃO DE BENTO XVI

E DO TEÓLOGO JOSEPH RATZINGER (1)

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EDUARDO FERRAZ DA ROSA 




Pedido que me foi um depoimento, em forma de  memória e evocação, sobre os legados intelectuais, doutrinais e religiosos do Papa Bento XVI e o pensamento do mesmo teólogo Joseph Ratzinger (16.04.1927–31.12.2022), lembrando-me a atenção e o estudo que prestei à sua obra, abordada numa Conferência sobre o seu pensamento teológico e filosófico, em especial sobre o seu importante livro Introdução ao Cristianismo.

O tema da referida Conferência – intitulada Filosofia, Ciência e Teologia: Cristianismo e Fé em Joseph Ratzinger cujo conteúdo retomarei aqui para iniciar o presente e sucinto testemunho, escrito ainda sob a primeira triste notícia do falecimento do Papa Emérito, teve efectivamente lugar em Angra do Heroísmo e foi proferida em 2006,  durante um Simpósio local cujo Painel de Debate coordenei no âmbito de um programa municipal sobre “Cultura, Arte e Ciência”.

– Recordo também que o meu empenhamento pessoal e a minha intervenção institucional na promoção desse evento foram, na altura, mais proximamente motivados pelo lançamento da republicação portuguesa (Editorial Principia) da citada obra (Introdução ao Cristianismo) de Ratzinger, acontecimento que havia sido organizado em Lisboa, na nossa Universidade Católica Portuguesa, durante o encerramento da Exposição Bibliográfica “Cristo e a Nova Evangelização” (2006), em colaboração com a Faculdade de Teologia da UCP.

Aquela apresentação do livro fora proporcionada pelo Prof. Henrique de Noronha Galvão (1937-2017), membro da Comissão Teológica Internacional e antigo aluno de Ratzinger (que o havia orientado no doutoramento em Teologia Dogmática, sobre “O conhecimento existencial de Deus em Santo Agostinho. Uma leitura hermenêutica das Confissões”), na Universidade de Regensburg (Ratisbona), aliás também famosa por ter sido depois o local de uma controvertida (e parcialmente incompreendida) conferência de Ratzinger sobre a Razão e a Fé, proferida a 13 de Setembro de 2006.

 

– Essa Conferência de Ratzinger (“Fé, Razão e Universidade: Memórias e Reflexões”), filosófica, histórica e teologicamente brilhante e muito pertinente, gerou um bem mediatizado “repúdio” e demais reacções de reprovação e discórdia temática por parte de vários meios e sectores confessionais, merecendo, ainda hoje, ser relida e reavaliada, porque tem relevância para os actuais diálogos e confrontos religiosos, civilizacionais e doutrinários entre o Ocidente, o Cristianismo e outras Religiões perante as várias facções político-ideológicas, expansionistas e bélicas do Islão, a par de uma reflexão sobre Ciência, Moral, Educação e Ensino, tendo sido de tal dimensão o gerado impacto daquele discurso do Papa Bento XVI que o mesmo entendeu, por conseguinte, afirmar ter “esperança em que, depois das reacções do primeiro momento, as minhas palavras na Universidade de Regensburg possam constituir um estímulo e um encorajamento para um diálogo positivo, também autocrítico, quer entre as religiões quer entre a razão moderna e a fé dos cristãos”.

 

E o antigo académico, acabou mesmo, na sua Audiência Geral, em Roma, sete dias passados, a 20 de Setembro de 2006, por recapitular a disputada questão, nestes termos: – Uma experiência particularmente bela (…) foi para mim poder pronunciar um discurso perante um grande auditório de professores e de estudantes da Universidade de Regensburg, onde durante muitos anos fui professor. Pude encontrar-me com alegria mais uma vez com o mundo universitário que, durante um longo período da minha vida, foi a minha pátria espiritual. Como tema tinha escolhido a questão da relação entre fé e razão. Para introduzir o auditório na dramaticidade e na actualidade do tema, citei algumas palavras de um diálogo cristão-islâmico do século XIV, com as quais o interlocutor cristão, o imperador bizantino Manuel II Paleólogo, de maneira para nós incompreensivelmente brusca, apresentou ao interlocutor islâmico o problema da relação entre religião e violência. Esta citação, infelizmente, pôde prestar-se a ser equivocada. Mas, ao leitor atento do meu texto, é claro que eu não pretendi de modo algum fazer minhas as palavras negativas pronunciadas pelo imperador medieval neste diálogo e que o seu conteúdo polémico não expressava a minha convicção pessoal. A minha intenção era muito diferente: partindo de quanto Manuel II diz sucessivamente de modo positivo, com uma palavra muito bela, sobre a racionalidade que deve guiar na transmissão da fé, eu quis explicar que não é a religião e a violência que caminham juntas, mas sim, religião e razão. O tema da minha conferência respondendo à missão da Universidade foi portanto a relação entre fé e razão: pretendia convidar ao diálogo da fé cristã com o mundo moderno e ao diálogo de todas as culturas e religiões”.

 

Ora o conteúdo daquela Conferência, bastante próximo do travejamento teorético (filosófico e teológico) dos capítulos centrais da Introdução ao Cristianismo, estava (e continua a estar) em rigorosa afinidade essencial com o teor de todas as suas obras, ensinamentos doutrinais e categorias hermenêuticas, exegéticas e eclesiológicas, apesar dos também conhecidos (apesar de bem diferentes) afastamentos teológicos, dogmáticos, cristológicos, institucionais, eclesiásticos, jurídico-canónicos e pastorais, que ora o aproximaram ora o distanciaram de outros teólogos de nomeada (Rahner, Lubac, Congar, Chenu, Moltmann e mesmo Balthasar…), e/ou de bem diferentes, diferenciados e diferenciáveis modelos e posicionamentos teológico-filosóficos, alguns deles visados e censurados (como Schillebeeckx, Boff, Gutiérrez, Sobrino, Haring, Küng, Haight, Curran), cuja proficiente análise rigorosa, detalhada e comparativa, não podendo desenvolver neste espaço, deixo para posterior ensejo.

 

– Por outro lado, nesta ocasião valerá a pena retomar outras facetas da obra e do magistério de Joseph Ratzinger no que se  refere a algumas ligações a Portugal (e não só àquelas por estes dias tão renoticiadas viagens e mediáticas visitas suas, em repisadas manchetes de espectáculo televisivo, ou de parada necrológica em revista, jornalismo rotineiro ou redes sociais mais ou menos lamuriosas, quando não apenas futilmente opinativas ou agressivas), porém antes e agora sobre mais profundas influências ou ecos do pensamento teológico de Joseph Ratzinger nas nossas academias, centros de estudos de Teologia e de Filosofia, ou então nas suas envolvências pastorais e eclesiais em questões de Mariologia (como, enquanto Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, no seu “Comentário Teológico”, o fez em sede de uma decisiva Antropologia Cultural e Devocional, com uma sólida Hermenêutica das Aparições de Fátima e das correspondentes, complexas e díspares problemáticas críticas (psico-fenomenológicas, epistemológicas, devocionais e proféticas das Revelações e das Visões públicas e privadas, etc.) também ali manifestas e indeclinavelmente integrantes das vivências populares, imaginárias, intelectuais e espirituais da Tradição e do Cristianismo histórico.


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Publicado em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 03-01-2023):


"Correio dos Açores" (Ponta Delgada, 03.01.2023):


e "Igreja Açores":
https://www.igrejaacores.pt/memorias-e-evocacao-de-bento-xvi-e-do-teologo-joseph-ratzinger-1/.

sábado, novembro 12, 2022

 

ENTREVISTA
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EDUARDO FERRAZ DA ROSA, PROFESSOR UNIVERSITÁRIO

Grupo “Voz da Saudade”:
Um projeto socio cultural e cívico
de cariz açoriano na América do Norte

 

Integrado no Festival “Outono Vivo”, foi recentemente lançado na ilha Terceira o livro Grupo Voz da Saudade – A sua história e a sua mensagem, da autoria do Eng. António Fernando Ázera da Silva, músico, emigrante e animador comunitário, natural da Praia da Vitória, fundador e presidente daquela associação artístico-cultural luso-canadiana e membro do Conselho das Comunidades Portuguesas (1997 e 2002).

Na sessão de Apresentação da obra – com a presença do Autor, da nova Presidente da Câmara Municipal da Praia Vitória (Dr.ª Vânia Figueiredo Ferreira), do Diretor Regional das Comunidades (Dr. José Andrade), do Dr. José António Maciel (Jurista), de Luís Dores (Músico) e de muitos amigos e colegas do autor –,  o Prof. Dr. Eduardo Ferraz da Rosa realçou o sentido cívico e a importância memorial da obra. Este é o texto integral da Entrevista sobre o livro agora lançado.



NO SEU DISCURSO DE APRESENTAÇÃO, FEZ PERCORREU MÚLTIPLAS INSCRIÇÕES DESTE TRABALHO. QUE CARACTERIZAÇÃO E LEITURAS RETEVE?

Com 328 páginas de texto e ilustrações, reproduções documentais e vasta memorabilia biográfica e autobiográfica, relatórios de actividade, balancetes orçamentais, arquivo de notícias, etc., esta obra, edição do autor, regista os historiais do Grupo Voz da Saudade, fundado em 1998 na cidade de Gatineau (província do Québec). 

O grupo integrou membros, maioritariamente oriundos dos Açores, da comunidade imigrante portuguesa e luso-descendente que, ao longo dos anos, souberam granjear distinções no Canadá, nos EUA e nos Açores, onde o Grupo se deslocou e actuou em 2000, 2004 e 2011.

 – Há poucas semanas, aliás em bonito gesto de homenagem regional, a viola de António Fernando, foi acolhida no Museu da Emigração Açoriana, na Ribeira Grande, ficando simbolicamente exposta nesse renovado espaço museológico, tal como, ainda naquela cidade micaelense, na Praça do Emigrante, haviam sido anteriormente colocadas, pelo Centro Comunitário Português “Amigos Unidos” (CCPAU) da cidade de Gatineau, três placas de Homenagem aos membros daquele exemplar grupo.


Depois, este livro traz um apelativo Prefácio de Onésimo Teotónio de Almeida, classificando-o como “registo algo fora do comum” e “documento valioso” para a história deste agrupamento, fornecendo igualmente “informações preciosas sobre a comunidade portuguesa de onde surgiu”, e mais permitindo “um acesso privilegiado ao complexo labirinto do processo de integração e assimilação de um grupo étnico português no Canadá”.

 – Estamos realmente perante materiais para “um case study, não apenas de sobrevivência e perseverança cultural num país de acolhimento mas, mais do que isso, de afirmação e crescimento num espaço que, apesar de toda a ideologia multicultural aí vigente, deixa escapar as suas manifestações de xenofobia”…

 De resto, várias das vertentes sinalizadas por Ázera da Silva poderiam ser articuladas com ensaios, teses e depoimentos como os de Mayone Dias, Victor Pereira da Rosa, Duarte Nuno Lopes, Carlos Teixeira, Salvato Trigo, João António Alpalhão, Rita Marinho, Elmer Cornwell, etc., e de muitos outros entre nós, que ali invoquei – como Álvaro Monjardino, para as dimensões sociojurídicas e político-constitucionais da emigração açoriana – e cujos testemunhos estão referenciados, preservados e referenciais nas actas, comunicações e debates dos nossos Congressos de Comunidades Açorianas (e não só…), desde 1978, ou mesmo antes, para além dos tristes imbróglios e algumas ancestrais lacunas diplomáticas e consulares, ou da ainda disputada querela do voto dos não-residentes/emigrantes (que ali tive de lembrar também em fidelidade ao depoimento do autor do livro), com serenidade teórico-prática mas sem nacionais pruridos político-constitucionais, ou correspondentes complexos político-estatutários autonómicos! 

E ninguém esqueceu ainda a tentativa do hínico apoderamento por parte de um ex-Secretário de Estado de Lisboa…


– De facto, os conteúdos narrativos e críticos deste livro proporcionam e divulgam muita informação que ajudará a continuar a estudar conjugadamente as vidas do autor, do Grupo e da intrincada existência antropológico-cultural, psicossocial e política de uma das nossas comunidades imigradas nas Américas e das causas da emigração insular açoriana.

 QUAIS OS TEMAS E PROBLEMAS QUE DISTINGUIU NA SUA APRECIAÇÃO DESTE LIVRO?

 A documentação recolhida e muito ordenada cronologicamente expõe ali, com  pormenor documental e documentado, factos históricos relativos à criação, sociologicamente situada, desta associação, à medida que vai juntando trajectos e relatando iniciativas numa série de explanações e apontamentos individuais e colectivos, fazendo dos motivos constantes uma valiosa “base de dados para historiadores, antropólogos e sociólogos” que queiram, possam e saibam continuar a estudar multidisciplinarmente, com metódica objectividade, metodologia científica e solidariedade de alma e coração, os fenómenos da Emigração e da Imigração portuguesa em geral e açoriana em particular.

 O livro traz logo esta significativa Dedicatória: –“Aos que ousaram atravessar o mar incerto em busca de um sonho e deram a conhecer ao mundo a valentia e a fé de um povo moldado no abandono e isolamento das ilhas. Ao bravo povo emigrante dos Açores”… E seguem-se alguns sucintos textos de carácter histórico-informativo, biográfico e até poético, com uma resenha crítica sobre a Emigração açoriana para o Canadá nos séculos XIX, XX e XXI, sendo referidos os diversos contextos e ambientes socioculturais, laborais, religiosos e associativos onde o Grupo germinou, com solidários apoios e dinâmicas, nomeadamente na proximidade interventiva do CCPAU (implantado em 1974, após o primeiro contingente migratório português para o Québec, em 1953).

 – Ora é precisamente a propósito dessa implantação populacional e da sua decorrente constituição comunitária que o autor faz uma elucidativa síntese antropológico-cultural e sociológica da referida área geográfica e da respectiva e progressiva concentração residencial de açorianos, sua estruturação habitacional, urbana, laboral, cívica e religiosa, não raro minadas por engenhos materiais e retóricas xenófobas!

 A SUA APRESENTAÇÃO ACENTUOU UMA ESPÉCIE DE “ESPÍRITO DO LUGAR”, LIGANDO-O A MÚLTIPLAS E PARTILHADAS RAÍZES E VIVÊNCIAS PRAIENSES. PORQUÊ?



 Sim. Porque, para além de referências literárias, humanas e ecológicas que guardo de visitas pessoais ao Canadá – e de algumas que emblematicamente relembrei de Nemésio, Eça de Queirós e outros no Québec francófono e luso-açoriano –, achei-as, a todas, inter-legíveis e conaturais a alguns horizontes desta obra, ao seu saudoso Grupo e às gentes da Praia da Vitória de ontem e de hoje (amiúde tão injustamente penalizadas e sofridas…):

 – Por isso as avoquei também através de apelativos arquivos fotográficos e imagens de vivências e valores memoriais comuns, percursos de infância, juventude, escola, vizinhança, parentesco, comunhão paroquial, artística e festiva, etc., como aqueles que fazem sentido na vida do autor deste livro, na nossa própria existência e na esperança mobilizadora para uma minimamente restaurada dinâmica de dignidade urbana e cívica, que nos liberte e faça superar a afrontosa decadência em que caímos como sociedade, ou para a qual, irresponsável e levianamente, a quase incríveis graus, nos foram atirando, até mais ver, com total impunidade!

Ilha Terceira, 11 de Novembro. 2022

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Texto da Entrevista publicada nos Jornais açorianos 
"Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 12.11. 2022)


e "Correio dos Açores" (Ponta Delgada, 12 de Novembro de 2022).



domingo, outubro 30, 2022

 

Memórias e Evocações

do Prof. Adriano Moreira

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Em 6 de Setembro de 2012, quando o Prof. Adriano Moreira comemorava o seu nonagésimo aniversário, efeméride justamente lembrada em diversos círculos intelectuais, académicos e mediáticos, com especial destaque no Jornal de Letras e na RTP1 (com as Entrevistas feitas por Soromenho Marques e Fátima Campos Ferreira), no Público (com a publicação de um belo texto de Isabel Moreira sobre o seu pai) e nas redes sociais (v.g. no Facebook, onde vimos acrescidamente partilhados, com outros reconhecidos amigos, depoimentos e apreços pela sua exemplar figura).

 Por mim – que tive, há mais de trinta anos, a feliz possibilidade de conhecer Adriano Moreira e de poder contar desde então com a generosidade honrosa da sua Amizade pessoal e da sua colaboração institucional –, não podia agora – nesta triste data da sua morte – deixar passar  mais uma significativa e sentida ocasião sem, também aqui e a partir destas insulares paragens, tornar a evocar a sua longa Vida e a sua vasta e rica Obra, mesmo que apenas na circunstância de um breve e localizado testemunho, cujo texto retoma hoje e em síntese compósita, à letra e na vigência ainda do essencial de anteriores escritos, algumas das memórias e afectos que dele guardo.

 



– Não me é fácil todavia, num sucinto depoimento como este, elencar tantas ou todas as ocasiões em que pude beneficiar com os seus diálogos e partilhar da sua franca companhia, amizade, conselho e estima, mas devo salientar as muitas oportunidades em que, bem de perto, colhi bons frutos das suas reflexões académicas, estudos e ensinamentos sociopolíticos, lembranças particulares e narrativas histórico-institucionais, como, por exemplo, nas Conferências promovidas pelo Departamento Cultural do Colégio Universitário Pio XII e pelo Centro de Cultura Europeia (nomeadamente aquela que apresentei e moderei com ele e com Jaime Gama), sob a empenhada tutela do nosso querido Director (Rev. Padre Dr. Joaquim António de Aguiar, CMF); na sua visita à Praia da Vitória, em companhia da sua filha mais nova e do Padre Aguiar; na superior cedência e acolhimento editorial do meu livro O Risco das Vozes (que foi publicado, em 2006, pela Academia Internacional da Cultura Portuguesa, a que tão diligentemente presidia, tal como se dignou citar o meu ensaio sobre o Império do Espírito Santo), para já nem salientar o seu notável e reconhecido papel no Conselho Supremo da nossa Sociedade Histórica da Independência de Portugal, na Sociedade de Geografia, na Academia das Ciências de Lisboa, no Instituto D. João de Castro (nascido este sob a égide dinamizadora e à sombra claustral do Pio XII…) e, evidentemente, o seu magistério universitário em Portugal e no Brasil, e os seus ensaios e tratados de Ciência e Filosofia Política, Geoestratégia, Diplomacia e Teoria da Cultura.

 Por estas e outras múltiplas razões, já antes do seu falecimento, foi o Prof. Adriano Moreira justamente agraciado com altas Condecorações Honoríficas nacionais, louvores, reconhecimentos e homenagens, edições biográficas, reportórios bibliográficos e teses sobre a sua vida, obras, carreira docente e política, de entre as quais registo as de Vítor Gonçalves, José Filipe Pinto e Marcos Farias Ferreira.

 Todavia, nesse horizonte de registos públicos da vida e obra do Prof. Adriano Moreira, igualmente merece assinalável destaque o espólio, verdadeiramente precioso para o nosso País no seu todo, existente em Bragança, no Centro Cultural e Biblioteca Adriano Moreira, que, com duplo e complementar alcance pessoal e colectivo, material e simbólico, pluridimensional e multidisciplinar, constitui e pode contribuir para um mais aprofundado estudo e uma mais ampla compreensão da História, da Cultura e do Destino de Portugal no Mundo, a partir de uma espécie de cartografia crítica das leituras e do pensamento deste insigne Professor e Estadista, tal como aquele acervo documenta e revela, ou pode ajudar a revelar, através dos sinais da sua eticidade – isto é, do seu tempo interior e pessoal, da sua situada temporalidade histórico-civilizacional, tão marcada (e recorrentemente estigmatizada na mutável crucificação das Cidades do Homem terreno…) por uma visão de raiz agostiniana, visivelmente próxima de Toynbee, mas também afim da poética e da epopeia camoniana, da teorese vieiriana, hispânica e luso-afro-brasileira – que bem espelhada está nos seus livros, escritos, marcas de ideal, acções, sonhos e até de utopias, tudo realçado no cruzamento espiritual e ideográfico, filosófico, jurídico-político, histórico-cultural, académico e religioso das categorias do seu pensamento existencial e da sua hermenêutica da historicidade portuguesa e universal, e desse modo espelhando a personalidade, o carácter e a alma do Prof. Adriano Moreira:

 – E é assim que, por estes dias de um tempo destinalmente erodido por provecta idade e pela sua longa caminhada existencial – ao vê-lo partir do nosso convívio terrestre – fiquei primeira e logo imediatamente a revê-lo chegar, vezes sem conta e anos e anos a fio, ao gabinete de trabalho do Padre Aguiar (seu irmão de peito e de frutuoso trabalho intelectual e concretizado em vários e pioneiros projectos institucionais, culturais e universitários), lá no nosso saudoso Colégio Universitário Pio XII, para dialogar, desabafar, ensinar, conferenciar, moderar, animar e partilhar tantos e tantos sonhos, certezas, receios, desencantos e persistentes planos alternativos ou complementares, ajudando a pensar sempre e a agir a par e em consequência para a frente e para cima, numa dialéctica evolutiva, espiralada e ascensional (como recolhera de Teilhard de Chardin) e como de modo conceptual e simbólico também gostava de significar com aquela conhecida e recorrentemente usada imagem da roda (histórico-temporalmente mutável, contingente, civilizacional e antropológico-orbitalmente giratória…), porém perpetuamente centrada, assente ou nuclearmente dinamizada sob a regência de uma espécie de eixo transcendental – cujos contornos metafóricos, cósmicos, religiosos e metafísicos estão analogamente presentes nos textos e narrativas  da Tradição filosófica, poética e sapiencial ocidental e oriental, tal como também em muitos dos discursos científico-cosmológicos e suas revoluções paradigmáticas (desde os Gregos a Copérnico e até às modernas Teorias do Átomo…).

 


Do Prof. Adriano, como filial e quase familiarmente o nomeávamos, retenho enfim,  sempre, um singular  retrato-presença viva, naquele seu carismático e testemunhal misto de sapiente e vivo olhar crítico, simultaneamente esperançoso, céptico, ansioso e utópico sobre o Mundo e a História, a Política e a Estratégia, a Cultura e a Fé Cristã (nomeadamente face ao “desafio que a doutrina conciliar trazia ao legado humanista europeu” e não só…), – enfim, sobre a Identidade e a comunidade de Destino de Portugal e dos Portugueses (afinada com Agostinho da Silva e Gilberto Freire), numa incansável, inquebrável, indomável e amiúde crucificante procura agónica e redentora dos sinais do Tempo (categoria histórico-civilizacional e metafísica sempre presente em toda a sua pujante reflexão intelectual e nas suas narrativas literárias, memoriais e espirituais, como exemplarmente revelou, entre tantos outros livros e conferências, em  A Espuma do Tempo, Memórias do Tempo de Vésperas ou em Notas do Tempo Perdido.

Infelizmente, deixa-nos Adriano Moreira num contexto nacional, europeu e internacional onde não faltam motivos de apreensão, muitos deles pressentidos e analisados por ele bem cedo e insistentemente materializados nas contemporâneas vigências, vesperais ou já vigentes e perigosas derivas espirituais e demenciais ideologias, crises e ameaças no Mundo e em Portugal, num quadro de falhanços socioeconómicos, morais e ético-políticos, regressões desumanas, interesses e abúlicas passividades de países e povos inteiros, como ele diagnosticava em 2011…

 – “Falhámos na democracia participativa e no debate público, baseados numa informação acessível e honesta. Não conseguimos estabelecer uma Justiça em que se possa confiar como última instância de tutela e garantia dos nossos direitos e deveres. Não soubemos valorizar a ideia de responsabilidade pública através da qual uma espécie de frugalidade útil se imponha à voracidade ostensiva do dispêndio inútil. Não melhorámos significativamente os padrões de equidade, nem reduzimos as fontes de desigualdade excessiva. Não vencemos a fraude nem a corrupção, factores de iniquidade e inimigos da decência humana. Pior que tudo, perdemos de vista a continuidade e o futuro, habituámo-nos a viver com se ninguém viesse depois, como se não tivéssemos filhos e netos”.

 Por tudo isto, numa época tão indigente como a nossa, tornar a evocar o Prof. Adriano Moreira por estes dias da sua última partida de entre nós e da nossa Pátria comum, não poderíamos deixar de gratamente retornar hoje à escuta da sua palavra, atentamente auscultando as heranças e lições das suas vivências, na configuração crítica, reflexiva e prática de um dever de exercício de verdadeira cidadania universal e de um direito de apelo à inteligência nacional e regional, – como ele escreveu, para uma lúcida e urgente nova definição do estatuto de Portugal e das suas parcelas constitutivas, integrantes e solidariamente integradas sob o signo trans-temporal e trans-histórico da Portugalidade.

 – “Creio ainda que desta crise de incerteza resulta algo mais. A convicção de que os Portugueses não podem ou não devem ser chamados apenas para receber e sofrer as más notícias. Para matérias tão importantes como a sua Constituição e a integração europeia, nunca foram solicitados a debater e participar, menos ainda a aprovar. As escolhas actuais e a dureza do regime económico e social em que vamos viver são tais que é tempo de se fazer justiça ao povo. Informá-lo de modo completo e honesto, chamá-lo a discutir e dar a sua opinião seria uma excelente maneira de começar a olhar para o futuro”.

 Angra do Heroísmo, 24 de Outubro de 2022

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Em "Diário Insular", Angra do Heroísmo, 29.10.2022

e "Correio dos Açores", Ponta Delgada, 30.10.2022.