sexta-feira, dezembro 11, 2009

Memórias de Giacometti com os Açores presentes


Michel Giacometti (1929-1990) é um nome que preenche e detém um lugar único na Antropologia Cultural desenvolvida em Portugal, mormente na área da Etnomusicologia.


Apesar de ter praticado uma Etnografia de carácter predominantemente empírico (e mais ou menos espontâneo, como João Leal e Pais de Brito a denominam), este etnólogo – nascido na Córsega e doutorado pela Sorbonne, mas radicado no nosso País desde 1959 na sequência de uma acentuada crise de saúde e de uma sugestiva e iniciática visita ao Musée de l’Homme em Paris –, deixou-nos uma obra de excepcional envergadura e alcance, especialmente devido às recolhas que efectuou para os Arquivos Sonoros Portugueses (1960) em conjugação de dedicações de pesquisa e ideários sociológicos e estéticos com o seu camarada Fernando Lopes-Graça, dos quais resultaram nomeadamente os vários volumes conhecidos e editados da Antologia da Música Regional Portuguesa e do Cancioneiro Popular Português (1981).


– Ora acontece que os Registos Etnomusicais, tão laboriosa e sistematicamente recolhidos por Giacometti, foram acompanhados de levantamentos e compilações não menos notáveis de outros documentos e peças antropológicas afins e complementares daqueles (fotografias, utensílios, narrativas e testemunhos orais, fichas e apontamentos de trabalho de campo, notas socioculturais e técnico-artesanais, etc.), de todos esses materiais dando mostra cabal as ricas colecções guardadas nos Museus do Trabalho (ao qual foi dado o seu nome, em Setúbal), da Música Portuguesa (Cascais) e Nacional de Etnologia (Lisboa).

Comemorações e Esquecimentos

Agora, comemorando-se em 2009 o 80º aniversário do nascimento e os 50 anos da chegada de Giacometti ao nosso País, com toda a justiça, merecimento e louvor assinalou-se no Continente a obra e a vida deste tão apaixonado quanto genuíno e incansável etnólogo francês, cuja sensibilidade e empenho de visão, ouvido, coração, memória e inteligência legou a Portugal uma herança de incalculável valor (conquanto ainda não devidamente divulgado e potenciado!) e cuja dimensão deixa a milhas as burocráticas sebentas de alguns empertigados portuguesitos de fraca cepa civilizacional, de outros tantos rotineiros e preguiçosos académicos de carreira e número, e de grossos cadeirões de pardas eminências de ruim gramática humana, cultural e política...


De resto, nesta era mediática e de tão amplos e sofisticados recursos – gastos, tantas vezes, em autênticas quinquilharias efémeras e alienantes subprodutos para estratégico divertimento de massas! –, nem sequer as nossas TVs (aonde tanto lixo é exibido ad nauseam) se tem lembrado lá muito da Série “Povo que Canta”, realizada por Alfredo Tropa e transmitida pela RTP, a partir de 1970, durante três anos seguidos…

– Mas, como dizia acima, nestas coisas da Cultura e do Património às vezes há honrosas excepções – e nem sempre tontas e oportunistas borboletas de decoração batem asinhas para chamar e entreter besouros de estimação e inofensiva parada… –, como é o caso das cidades de Coimbra e de Cascais.

De facto, em Coimbra, tal como foi anunciado, o Sector Intelectual do PCP (Partido Comunista Português) organizou – e bem! – entre Janeiro e Outubro um Ciclo de Comemorações, denominado "Reencontro com Giacometti", para o qual contou com a colaboração de entidades, organizações, associações, pessoas e grupos culturais cuja vida, actividade ou objecto de estudo tem contribuído para divulgar o papel e legado de Michel Giacometti e para celebrar e promover a Cultura Popular Portuguesa, e de entre os quais se contam os seguintes: Câmara Municipal de Coimbra, Universidade de Coimbra, Sindicato dos Professores da Região Centro, Museu da Música Portuguesa/Casa Verdades de Faria (Cascais), Museu do Trabalho "Michel Giacometti" (Setúbal), A Escola da Noite, Ateneu de Coimbra, Bonifrates, Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra, Rodobalho, Teatrão, Teatro do Morcego, Brigada Víctor Jara, Diabo a Sete, Quarto Minguante, Realejo e Rebimbomalho.

E aqui, relembre-se, constituindo a principal iniciativa política deste Ciclo, foi promovida uma recolha de assinaturas reivindicando a reedição e publicação, por parte da RTP, da citada Série "Povo Que Canta" (que reúne, em trinta e sete episódios, sons e imagens da Vida e da Cultura Rural do nosso Povo, para “que os documentos que os constituem possam cumprir, sempre que convocados e para todos os interessados, a intenção de contribuir para ‘a análise necessariamente rigorosa da sociedade’ e das tradições culturais portuguesas, das quais aqueles sons e imagens foram gerados, e nos foram dados a herdar”.

Por seu lado, a Câmara de Cascais (presidida pelo social-democrata António Capucho) acaba – e muito bem! – de liderantemente associar-se ao IELT (Instituto de Estudos de Literatura Tradicional/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa) e à FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia) para viabilizar a monumental edição (Gradiva) do “Espólio de Medicina Popular recolhido por Michel Giacometti”, publicado há poucas semanas, com o título de Artes de Cura e Espanta-Males, sob a Coordenação de Ana Gomes de Almeida, Ana Guimarães e Miguel Guimarães, e com Prefácio de João Lobo Antunes:

– Trata-se aqui da publicação em livro (687 páginas, em formato grande) de 5.550 Fichas de Doenças do Espólio Documental de Giacometti (preservado no Museu da Música Portuguesa, em Cascais), cujos textos de Medicina Popular (com rezas, ladainhas, benzeduras, provérbios, receitas e receituários, remédios, ervanárias, etc.) foram lidos e são comentados por médicos especialistas, poetas, artistas, investigadores e professores – Júlio Machado Vaz, Fernando Nobre, Teresa Rita Lopes, Isabel do Carmo, Germano Xavier do Carmo, entre outros, num riquíssimo repositório, acompanhado de Glossário e Bibliografia, de saberes e práticas ancestrais relativas ao corpo, à doença e à procura da cura.

Recordações Açorianas

Devo finalmente salientar que para nós também, como açorianos e como investigadores, este livro – que por via da Etnomusicologia desenvolvida por Giacometti ainda deixaria ocasião para evocar as recolhas insulares de Artur Santos e de José Alberto Sardinha… –, se reveste de um específico e particular interesse pela presença que a nossa terra e a nossa gente aqui marcam directa ou indirectamente, conforme as referências retidas e citadas, por exemplo a partir de Teófilo Braga, Côrtes-Rodrigues, Leite de Athaíde, Drumond, Inocêncio Enes e M. Dionísio.Ainda por isso e tal como já escrevi em “Narrativas e Virtualidades de um Património de Crenças” (cf. Heranças da Terra, 2000) a propósito do imenso e análogo labor localmente proporcionado do nosso querido J. H. Borges Martins e das suas Crenças Populares da Ilha Terceira (2 Volumes, Edições Salamandra, 1994) – obra que Giacometti infelizmente já não pôde desfiar, mas que não posso deixar de recordar neste contexto temático –, realmente, trabalho(s) como este(s), podem e devem ser acolhidos, potenciados, lidos e estudados nas nossas Escolas e na nossa Universidade, sendo os seus conteúdos susceptíveis de fornecer abundante campo para vastíssimos, criativos e mobilizadores projectos disciplinares e interdisciplinares (desde a Filosofia à Antropologia Cultural, da Psicologia à História da Mentalidades, da Sociologia à Ciência, e da Literatura à Religião), além de constituírem um valente e sério exemplo para tanto desleixo ou tanto interesseirismo cultural que por aí pululam, de braço dado com preguiças e ignorâncias institucionais de bradar aos Céus, rogando-se curas para tantas maleitas históricas ou esconjuro para alguns dos males espirituais e crónicas patologias sociais que persistem em assombrar muitas das nossas vivências pessoais e insuspeitados, recorrentes ou estagnados imaginários colectivos nacionais e regionais…


(*) Publicado em "Diário dos Açores", "Correio dos Açores", "A União" e Azores Digital.