domingo, novembro 17, 2013


Memória e Presença
de Albert Camus

1. No passado dia 7 de Novembro ocorreu o centésimo aniversário do nascimento de Albert Camus, escritor, ensaísta, dramaturgo, jornalista e filósofo francês nascido na Argélia (Mondovi, Constantina, 1913) e falecido em França (Villeblevin, Yonne), num acidente de viação, a 4 de Janeiro de 1960, conforme sucintamente tivemos já ocasião de evocar aqui. 


 – Todavia, por sugestão feita ao DI, retomamos hoje desenvolvidamente o texto dessa memória, registando ainda que o desaparecimento de Camus foi então também assinalado entre nós, neste mesmo jornal angrense, logo na sua edição de 5 de Janeiro, e ainda com uma posterior e específica evocação inserida na sua página de Letras e Artes (Nº. 284, 1º. da 2ª. Série), então dirigida por Emanuel Félix, na qual foi inserido, em caixa, um breve mas denso e significativo extracto de La Chute (A Queda), no qual se desenha uma característica reflexão camusiana sobre a morte, o suicídio, o martírio, o esquecimento, o escárnio, o aproveitamento e a complexidade existencial da compreensão…

Figura de referência na Literatura do Século XX, Camus é autor de uma vasta obra que inclui, entre outras títulos, O Estrangeiro (adaptado ao cinema, em 1967, por Visconti), A Peste, O Homem Revoltado, O Mito de Sísifo, Os Justos, O Exílio e o Reino, A Queda e Cartas a um Amigo Alemão (com um desenho de capa por Lima de Freitas), todos editados pelos “Livros do Brasil”, muitos deles traduzidos em português (nomeadamente por António Quadros, Urbano Tavares Rodrigues, José Carlos Gonzalez e Virgínia Motta), sendo que alguns incluíam notáveis e pioneiros Prefácios ou Estudos originais no nosso País (especialmente no caso de António Quadros); versões das respectivas introduções às edições francesas, como a de Jean-Paul Sartre (de quem aliás Camus se afastaria em 1952 por divergências políticas e filosóficas) para O Estrangeiro, traduzida de Rogério Fernandes; a de Jean Sarochi para A Morte Feliz; a de Paul Viallaneix para Cadernos II - Escritos de Juventude), e outras sugestivas explanações informativas ou ensaísticas (como a do posfácio de Liselotte Richter a O Mito de Sísifo).


2. Filho de um humilde trabalhador rural e apesar de grandes dificuldades materiais, Camus frequentou a Universidade de Argel, onde terminaria uma licenciatura em Filosofia com uma tese sobre S. Agostinho e Plotino. Depois, tendo sido forçado a deixar a carreira académica por motivos de saúde, dedica-se ao teatro e ao jornalismo, tendo trabalhado no Paris-Soir e sido chefe de redacção (terminada a II Guerra Mundial e a ocupação nazi da França, contra a qual lutara ao lado da Resistência) no jornal Combat.

Prémio Nobel da Literatura (1957), todo o pensamento, as acções e os livros de Albert Camus foram exemplar e genuinamente moldados e movidos por profundas inquietações existenciais, humanistas e metafísicas, e político-ideológicas e éticas, estando fundamentalmente marcados por recorrentes motivos de reflexão e tematização sobre a condição humana, a finitude e a angústia, o absurdo e a revolta, os totalitarismos e a resistência moral, a arte e a paixão pela vida, o compromisso e o perdão, o sofrimento e a violência, o medo e a morte, a justiça e a felicidade.

Esta efeméride camusiana tem vindo a ser assinalada um pouco por todo o mundo, sendo todavia que na própria França não foi possível promover nenhuma comemoração oficial sob a égide do seu Ministério da Cultura e da Comunicação, não tendo igualmente chegado a concretizar-se qualquer evento evocativo na Biblioteca Nacional, nem sequer tendo chegado a ter lugar consensual a prevista Exposição, no âmbito da capital europeia da cultura, em Marselha e Aix-en-Provence…


– E assim, pelos vistos, a memória de Camus, o seu pensamento, as suas tomadas de posição, as suas acções e militâncias, e tudo aquilo que ainda nele foi matéria de controvérsia, dissensão ou dissidência (a questão da Argélia, a experiência comunista soviética, o desalinhamento partidário, a diferenciação face ao existencialismo e ao marxismo, a demarcação perante o recurso ao terrorismo armado, etc.), tudo isso continua a pesar na multiplicidade divergente, ou contraditória, com que o autor de O Avesso e o Direito continua a ser visto, lido, situado… e dificilmente recuperável (como até com os seus restos mortais o figurão de Sarkozy tentou instrumentalizá-lo ao pretender transferir o que deles (não dele!) restaria para o Panteão parisiense…

Por outro lado, muitas tem sido as edições, congressos, simpósios, colóquios e debates que a vida e obra de Albert Camus tem suscitado em vários países, academias e órgãos de comunicação social, inclusive em Portugal (Universidades do Porto e Évora, Centro Cultural de Belém, Academia das Ciências, em Lisboa, etc., sendo que nesta última proferiu uma Conferência evocativo de Camus pelo embaixador Marcello Duarte Mathias, referencial autor do consagrado e pioneiro ensaio A Felicidade em Albert Camus, original de 1975, entretanto reeditado e aumentado).


3. Entre nós, aqui em Angra, as obras de Camus foram conhecidas e divulgadas, constituindo as respectivas edições pelos “Livros do Brasil” – recordo – presença regular, nomeadamente, pela mão de José Teixeira de Borba, na antiga secção e atenta montra de livraria da Loja do Adriano.

– Ali amiúde as discuti com o meu saudoso amigo e professor de Filosofia no Liceu, Dr. Hélder Lima, com uma abertura e uma sensibilidade críticas que os programas oficiais e os nossos velhos e secos manuais escolares adoptados por si só não permitiam…, apesar das diferenças em métodos e objectivos, bem notórias entre o austero e formal Augusto Saraiva e as Antologias de Psicologia e de Filosofia muito bem organizadas por Jorge de Macedo, Joel Serrão e Rui Grácio, que tínhamos de seguir em conformidade (mais ou menos oficiosa…) com os programas curriculares e disciplinares daquela época, se bem que, alguns deles, vistos à distância e comparados com alguns critérios, (des)orientações e competências actuais, não fossem, talvez, assim tão mal formadores como científica (e ideologicamente!) os pintam às vezes…



Para mim, que li e estudei Albert Camus praticamente todo e desde muito novo (e que o debati tantas vezes, como referi, à margem das aulas liceais e depois universitárias de Filosofia…), reconheço nele ainda hoje a mesma e perfeita síntese “viva e intacta” da sua reflexão, timbrando inesquecivelmente “a cintilação intelectual e humana que rodeia o seu nome”, como justamente escrevia Duarte Mathias:

– “E bem é que assim seja, porquanto muitos dos problemas por ele abordados, das causas por ele defendidas como das forças ocultas cuja marcha ele não se cansou de denunciar, permanecem instalados no nosso tempo, quando não em nós mesmos. A isto se deve, em grande parte, aliás, a sua popularidade e a actualidade do seu pensamento”, pelo que identicamente “para muitos da minha geração, o autor de O Estrangeiro logrou ser, pelo que escreveu e pelo que foi, mais do que uma fonte de inspiração, uma presença amiga e estimulante”.

De resto, sobre Albert Camus, entretanto, tem-se multiplicado, em Portugal e (ainda mais) no Brasil, estudos e teses académicas no âmbito da língua e da cultura portuguesas, confrontando a sua obra com a de outros escritores e pensadores de diversas áreas, correntes, estilos e visões do homem e do mundo (casos de José Saramago e de Vergílio Ferreira), enquanto muito ainda há a trabalhar e (re)descobrir no âmbito da sua obra literária, filosófica, política e ética, para com ele e nele, e citando-o, depois de termos falado “da nobreza do mister de escrever”, repormos verdadeiramente

“o escritor no seu verdadeiro lugar, sem outros títulos que não sejam os que partilha com os seus companheiros de luta, vulnerável mas teimoso, injusto e apaixonado pela justiça, construindo a sua obra sem vergonha nem orgulho à vista de todos, sempre dividido entre a dor e a beleza, e dedicado, enfim, a tirar do seu duplo ser as criações que obstinadamente tenta edificar no movimento destruidor da história"...



– E isto, para lhe darmos o direito à palavra e à esperança, como ele o mereceria no seu imaginativo e indomável carácter, reconhecendo-o ainda nos homens do nosso tempo e nesta actualidade às vezes tão absurda, tão injusta e tão desalmada nos seus pesados e dolorosos rochedos de Sísifo,

“junto de todos esses homens silenciosos que não suportam no mundo a vida que lhes é dada senão pela recordação ou o regresso de breves e livres felicidades”!